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Em junho de 1985, há exatamente 40 anos, fui eu prestar provas do 9º ano ao Centro de Exames de Paris, com várias dezenas de outros imigrantes e filhos de imigrantes portugueses. Nervoso miudinho. Passei com honras.
Dois anos depois, em junho de 1987, voltei ao mesmo sítio, para os exames do 11º ano, acompanhada pela minha querida professora, a magnífica Sra Cunha, e os meus companheiros de aulas. Um grupinho de teimosos que só raramente adormeciam entre análises textuais do Cancioneiro e decorar os factos da Ínclita Geração aos domingos de manhã. Passei com orgulho e suor. E poucas horas de sono.As provas do 12º ano já foram feitas com as outras todas do temível Bac. Foram provas “livres”, autorizadas a quem tivesse feito os cursos de língua e cultura portuguesa pelo CNED, o sistema de ensino à distância do Ministério da Educação francês. Em tempos pré-digital, implicou muita tinta e papel, envelopes amarelos gigantes que mal cabiam na caixa do correio e alguns extravios que obrigaram a reescrever semanas inteiras de trabalhos de casa. E ai de mim que me tivesse esquecido de proteger com plástico a dissertação em dias de chuva... Não havia, naquela época, ensino integrado do português nas escolas do ensino público francês. Lembro-me de ouvir falar de uma ou outra para a elite algures em Paris, onde era possível ter aulas sem ter de abdicar de viver, mas parecia-me na época mais um mito urbano do que uma realidade. Os exames, esses, eram cortesia dos serviços consulares. A preparação para os exames, e as aulas, eram por conta de associações lusas e professores particulares, teimando com brio em providenciar uma ligação forte com uma pátria que, tal como hoje, mal lhes retribuía o amor. Quando penso nas piadas gozonas em Portugal sobre os “avecs”, até se me sobe uma azia que me queima a alma. Sabem lá. Não sabem dos sacrifícios dos pais que tinham de pagar pelas aulas. E não era pouco. Emigraram em busca de vida melhor, deixaram a luz da sua terra, e trocaram o azul do seu mar pela cinza do betão dos subúrbios parisienses, e todo o dinheiro era contado. Inscrever um filho, dois, ou mais, nas aulas de português, implicava um esforço financeiro avultado que tinha de ter um retorno garantido. Ai do miúdo que não desse o seu melhor nas provas do 9º ano. Obter a certidão era um momento de orgulho para pais que na sua maioria só a quarta classe tinham, e de libertação para miúdos que queriam ser adolescentes como todos os outros. Poucos eram os que continuavam para o 11º, menos ainda para o 12º. As aulas de português não deixavam espaço para quase nada. Quais tempos livres! Quais aulas de música, dança, desporto, cinema com amiguinhos ou andar pela cidade sem fazer nada, qual quê! As quartas, sábados e domingos eram para o português. Era preciso fazer em simultâneo dois currículos escolares. Era trabalhos de casa a dobrar e severo escrutínio parental. Era garantir sucesso escolar em duas línguas e duas culturas. Era provar aos franceses que erámos tão bons ou melhores do que eles na escola oficial, e era provar aos portugueses lá na terra que ainda merecíamos o nosso passaporte. Mas mais complexo ainda, para quem continuasse para além do 9º ano, era suportar as críticas dos outros imigrantes que percebiam isso como uma ambição descabida de quem certamente se crê superior. Porque afinal, quem precisa do 12º ano para limpar escadas ou rebocar paredes em terras francesas? Continuei. Teimosice ou brio, curiosidade ou amor de verdade, 40 anos depois ainda não sei. Só sei que carrego na voz esta minha história: o sotaque francês que espreita ainda hoje por baixo do meu português, qual estéreo, e que foi muitas vezes motivo de escárnio mal disfarçado em certos meios em Portugal, é hoje motivo de orgulho. Vivem em mim anos de sacrifício e amor; um esforço inimaginável para quem a voz só soa em mono. (na foto , sou eu, claramente. Tenho 9 anos, a idade quem que comecei as aulas de português. O laranja e o decor data exatamente esta foto, não haja dúvidas)
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